Monday, January 12, 2015

A Dependência Química à Luz da Psicologia Transpessoal

Alcoolismo e drogadição

Texto: Eliziane Rosa

Variedade de emergência espiritual em enfoque neste trabalho, a dependência química pode se apresentar tanto como detonador quanto como manifestação de um processo já instalado de emergência espiritual motivado por outras causas, incidindo concomitantemente sobre o indivíduo.
Embora a dimensão espiritual seja prejudicada devido ao potencial destrutivo do uso de determinadas substâncias, pode-se descrever o vício como um tipo de emergência espiritual já que, por trás do consumo de substâncias, há uma busca de transcendência e totalidade, ainda que quase sempre mal sucedida.

Por outro lado, a utilização de substâncias psicodélicas por diversas civilizações e sociedades ao redor do mundo, desde a Antiguidade até hoje, aponta para seu potencial transformador antes e durante uma emergência espiritual. Quanto ao álcool e ao sem-número de substâncias tóxicas, com evidentes efeitos nocivos ao indivíduo, ainda que não tragam serenidade e insights importantes, promovem alguma sensação de dissolução das fronteiras individuais e amenizam emoções perturbadoras, como afirma William James:

A influência do álcool sobre a humanidade é inquestionavelmente devida ao seu poder de estimular as faculdades místicas da natureza humana, geralmente esmagadas pelos fatos e críticas duras das horas sóbrias. A sobriedade diminui, discrimina e diz não; a embriaguez expande, unifica e diz sim. (JAMES apud GROF, 2000, p. 168-169)

Sobre a relação entre a drogadição e a busca da transcendência, bem como a distinção entre o uso controlado de determinadas substâncias para fim de expansão da consciência e a dependência que promove o torpor e a intoxicação, falaremos mais detalhadamente no próximo capítulo.

3 Drogadição como emergência espiritual

3.1 O uso de substâncias psicodélicas para acesso a estados holotrópicos de consciência

Antes de nos debruçarmos sobre a dependência química e seu potencial transformador enquanto modalidade de emergência espiritual, faz-se necessária, de antemão, a distinção entre o uso de substâncias psicodélicas, aquelas utilizadas em rituais de ascensão a estágios elevados de consciência, e a drogadição através de substâncias narcotizantes e entorpecentes.
Stanislav Grof dedicou grande parte da sua vida aos estudos sobre as implicações dos estados não-comuns de consciência, motivados por diversas experiências transcendentais, dentre as quais o uso de substâncias químicas de efeito psicodélico. Suas investigações neste terreno tiveram início em 1956, no Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Praga, quando, ainda recém-formado em medicina, entrou em contato com a Dietilamida do Ácido Lisérgico, o LSD, substância sintetizada no Laboratório Sandoz, na Suiça.

À época, os efeitos ainda desconhecidos, mas já surpreendentes do LSD sobre a psique provocavam o fascínio e a inquietude de toda a comunidade psicanalítica. Foram recrutados voluntários para pesquisas com a nova substância, dentre os quais estava Grof. A experiência por que passou sob o efeito psicodélico do LSD marcou para sempre a vida e a trajetória profissional de Grof, como ele mesmo descreve:

Há mais de quarenta anos, uma poderosa experiência, que, no relógio, durou apenas algumas horas, modificou profundamente minha vida pessoal e profissional. Quando era um jovem residente de psiquiatria (...) fui voluntário para uma experiência com LSD (...). Essa sessão, e particularmente seu período de culminância, durante o qual tive uma experiência de consciência cósmica, esmagadora e indescritível, despertaram em mim um interesse intenso e vitalício em estados não-comuns de consciência. Desde então, a maior parte de minhas atividades clínicas e de pesquisa consistiram da sistemática exploração dos potenciais terapêuticos, transformadores e evolutivos desses estados. (GROF, 2000, p. 9)

Não demorou para que Grof iniciasse um programa de estudos sobre o as implicações da nova substância na consciência, através do qual pode verificar muitas relações e semelhanças entre as experiências alcançadas através da administração de substâncias psicodélicas e os episódios místicos e transcendentais relatados por povos e culturas ligados às tradições espirituais.

Já nos Estados Unidos, integrou Centro de Pesquisa Psiquiátrica Maryland, último programa de pesquisa psicodélica sobrevivente, na época em que a proibição do LSD naquele país retardou as pesquisas sobre o potencial terapêutico de substâncias psicodélicas.

Devido à proibição do uso de LSD, Grof enveredou por outros processos através dos quais seus pacientes pudessem acessar estados não-comuns de consciência prescindindo da administração de substâncias exógenas. Daí surgiu a respiração holotrópica, técnica respiratória que em muito se assemelhava ao LSD no tocante às experiências transcendentais que era capaz de despertar.

A partir de então, Grof passou a experimentar e desenvolver uma variedade de técnicas e experiências capazes de elevar os indivíduos ao que ele chamou de estados holotrópicos (GROF, 1992). O termo holotrópico, formado pelos termos gregos holos (totalidade) e trepein (ir em direção a algo), designa aquilo que se orienta para a totalidade, para a inteireza. Os estados holotrópicos, portanto, são aqueles em que, segundo Grof (2000, p. 18), ―podemos transcender as fronteiras do ego corporal e reivindicar nossa identidade total‖.

A partir de sua investidura no campo da antropologia, Grof entrou em contato com uma variedade de rituais, praticados ao redor do mundo e ao longo da História, muitos deles conduzidos a partir da administração de substâncias psicodélicas de naturezas e propriedades diversas, todas elas utilizadas para fins de obtenção de estados holotrópicos de consciência:

A lendária poção divina conhecida como haoma no antigo Zend Avesta Perda e soma na Índia era usada pelas tribos indo-iranianas há vários milênios e foi, provavelmente, a fonte mais importante da religião e da filosofia védicas. Preparações de diferentes tipos de cânhamo têm sido fumadas e ingeridas sob diferentes denominações (haxixe, charas, bang, ganja, kif, maconha) nos países orientais, na África e na região do Caribe para recreação, prazer e durante cerimônias religiosas. (...) Plantas que alteram a mente com muita eficácia eram bastante conhecidas em várias culturas indígenas pré-hispânicas – entre os astecas, maias e toltecas. As mais famosas entre elas são o cacto mexicano peiote (lophophora williamsii), o cogumelo sagrado teonanacatl (psilocybe mexicana) e ololiuqui, sementes de diferentes variedades de plantas trepadeiras (ipomea violacea e Turbina corymbosa). (...) A famosa ayahuasca, yajé ou santo-daime sul-americana é uma decocção de um cipó da selva (banisteriopsis caapi) combinado com outras plantas. (...) Tribos aborígenes na África ingerem e inalam preparados da casca do arbusto iboga (tabernanthe iboga).

Os avanços da psicofarmacologia permitiram, ainda, a produção em laboratório de substâncias psicodélicas puras, isoladas de plantas ou sintetizadas. Obviamente, o interesse de Grof recaiu sobre substâncias que atuam positivamente na psique, proporcionando estados elevados de consciência com potencial de cura ou transformação. A administração moderada e controlada dessas substâncias – através de sessões místicas, terapêuticas, recreativas ou ritualísticas – é vista por Grof como uma ferramenta positiva para o alcance de estados não-comuns de consciência que favoreçam a emergência de conteúdos psíquicos.

O consumo de substâncias tóxicas como o álcool e os narcóticos, por outro lado, devido à incapacidade de provocar estados não-comuns de consciência favoráveis a processos de cura e transformação, são uma ―busca mal direcionada pela transcendência‖ (Grof, 2000, p. 117). Diferentemente das substâncias de efeito psicodélico, o álcool e os narcóticos incitam estados de consciência nebulosos, dos quais seus adictos não podem facilmente se livrar, por conta da grande predisposição à dependência química e psicológica que essas substâncias carregam.

Sobre o álcool e os narcóticos, Grof diz que:

(...) entorpecem os sentidos, turvam a consciência, interferem com as funções intelectuais e produzem anestesia emocional. Os estados transcendentais caracterizam-se por um grande aumento de percepção sensorial, serenidade, clareza mental, abundância de insights filosóficos e espirituais, uma riqueza incomum de emoções.

As substâncias psicodélicas auxiliam, num processo terapêutico transpessoal, em significativas mudanças em áreas sensoriais e, ao contrário do álcool e dos narcóticos,
não debilita o intelecto, o que permite que relevantes insights psicológicos sobre dificuldades emocionais e dinâmicas do inconsciente possam emergir à superfície da consciência.

http://www.grupoomega.org/site/images/grupo-omega/monografias/monografia-eliziane-rosa-lassmann-a-dependencia-quimica-a-luz.pdf

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