Thursday, October 30, 2014


A FAMÍLIA E AS DROGAS: 
reflexões de uma terapeuta familiar

Era uma vez um rato que, olhando por um buraco na parede, viu o fazendeiro e sua esposa abrindo um pacote. Pensou logo no tipo de comida que poderia haver ali. Ao descobrir que era uma ratoeira ficou aterrorizado. Correu ao pátio da fazenda advertindo a todos: “Há uma ratoeira na casa!”

- “Desculpe-me, Sr. Rato”, disse a pata, “eu entendo que isso seja um grande problema para o senhor, mas não me prejudica em nada, não me incomoda.”

- “Desculpe-me, Sr. Rato”, falou o porco, “mas não há nada que eu possa fazer, a não ser rezar. Fique tranquilo que o senhor será lembrado nas minhas preces.”

- “O que, Sr. Rato? Uma ratoeira? Por acaso estou em perigo? Acho que não !”, completou a vaca.

O rato voltou então para a casa, cabisbaixo e abatido, para encarar a ratoeira do fazendeiro.

Naquela noite ouviu-se um barulho como o de uma ratoeira pegando sua vítima. A mulher do fazendeiro correu para ver o que havia. No escuro, ela não viu que a ratoeira havia pegado a cauda de uma cobra venenosa. E a cobra picou a mulher…

O fazendeiro a levou imediatamente ao hospital. Ela voltou com febre. Todo mundo sabe que, para alimentar alguém com febre, nada melhor que uma canja de galinha. O fazendeiro pegou seu cutelo e foi providenciar o ingrediente principal.

Como a doença da mulher continuava, os amigos e vizinhos vieram visitá-la. Para alimentá-los, o fazendeiro matou o porco. A mulher não melhorou e acabou morrendo. Muita gente veio para o funeral e o fazendeiro então sacrificou a vaca, para alimentar todo aquele povo.

Moral da história: na próxima vez em que você ouvir dizer que alguém está diante de um problema e acreditar que o problema não lhe diz respeito, lembre-se de que, quando há uma ratoeira na casa, toda a fazenda corre risco.




Essa estória aponta para o perigo de se olhar um problema de forma isolada, como se ele atingisse apenas o outro. Existe, na realidade, uma cadeia de eventos por detrás de cada situação e muitas possibilidades de interpretá-la. Assim, o problema que atinge um indivíduo é problema de todos, em dimensões diferentes, desde o nível mais próximo (casal, família nuclear, família extensa) até o mais distante (escola, trabalho, comunidade). Pensar sistemicamente é isso: nada pode ser visto ou interpretado isoladamente.

Sabe-se que, quando um indivíduo está vivenciando um problema e sendo afetado por ele, todo o entorno é afetado também. Por essa razão, destaca-se a importância da terapia de família, que proporciona a todos participar da administração do problema apresentado, que a todos alcança.

Quando o problema diz respeito às drogas, não é diferente. A família, então, como um lugar comum a todos, precisa estar atenta aos sinais e encarar o problema de frente.

O objetivo deste artigo é apresentar algumas reflexões/ideias sobre o impacto que o uso de drogas ocasiona na família. Não vou me estender nos tipos de drogas e suas especificidades, mas destacar as consequências que atingem a família do dependente em seu todo.

Para que o leitor possa acompanhar as reflexões, é necessário estabelecer a diferença entre usuário de drogas e dependente de drogas. Segundo Laranjeira e Surjan (2001), o uso indica qualquer consumo de substância independente da frequência ou da intensidade, incluindo uso esporádico ou episódico. Dependência significa o ato de usar uma droga que deixou de ter uma função social e de eventual prazer e passou a ser um ato em si mesmo. É considerado um ato compulsivo para o consumo de drogas contínuo ou periódico pra evitar o mal estar produzido por sua privação.

Também é importante dizer a que família me refiro, pois, hoje, a família não se restringe ao formato tradicional que considera somente os laços consanguíneos. Dessen e Costa Júnior (2005) consideram que família é um grupo que se mantém pelo parentesco e pelas relações interpessoais entre seus membros, mantidos por apoio, afeição, divisão de tarefas domésticas, cuidados com a prole e cooperação mútua em várias outras atividades. Assim, o conceito atual de família apresenta a importância dos laços afetivos e do aspecto solidário nas relações entre seus membros.

Quando uma família se depara com o uso de drogas por um de seus membros, apresenta-se inicialmente uma tentativa de negar o problema, tanto por parte do usuário como pelos membros da família. Aos pais – ou a um deles – custa acreditar que seu filho esteja usando drogas, muitas vezes não querendo ver aquilo que lhe está diante dos olhos. Há um misto de vergonha, culpa e medo. A revelação do uso é, muitas vezes, provocada pela conduta atípica que o usuário passa a ter, por alguma manifestação de um quadro psiquiátrico ou doença orgânica, outras vezes, por algum conhecido que decide levar o fato aos familiares ou, até mesmo, por algum movimento do próprio usuário que, não suportando mais guardar seu segredo, deixa à vista indícios do uso para que alguém da família encontre.

Descoberto ou revelado o uso, a família passa a tentar controlar o usuário e é comum iniciar-se um processo de mentiras, resultado de uma tentativa de controle que antes não acontecia. Por exemplo, os pais começam a querer controlar o que até ali não controlavam: hora de sair, hora de chegar, companhias do filho, etc. Cria-se então uma atmosfera de desconfiança velada, estabelecendo-se pactos de segredos e mentiras entre os membros da família. Dá-se aí uma distorção na percepção do afeto: – “se você não confia em mim é porque não me ama”! ou – “se você me diz não é porque não me ama”. Essa distorção é uma forma de o usuário resistir à mudança que está sendo estabelecida pela família no intuito de resolver o problema.

Recentemente ouvi um dependente em abstinência dizer que, quando for pai e disser não ao filho e este perguntar por que, ele vai responder: “porque sou seu pai e sei o que é melhor pra você neste momento”. A questão dos limites é muito importante no processo de socialização e tarefa difícil para os pais, especialmente os que se sentem em dívida com os filhos. Dizer “não” exige firmeza e para isso você precisa ter certeza de que está fazendo o seu melhor. Saber se acertou no processo de educação do filho só se sabe a posteriori, depois dos filhos crescidos; então, é essencial ter a convicção de que se está fazendo o melhor possível. Erros acontecerão e precisamos estar preparados e atentos para evitá-los, mas é a certeza de que estamos nos dedicando ao processo educativo que dá firmeza ao não, ao limite. E não se pode esperar que o filho aceite o limite com facilidade, porque ele precisa aprender a lutar pelo que quer. Entendo que a tarefa dos pais é dizer não quando é preciso, e a tarefa do filho é insistir pelo sim. Para que o grupo familiar alcance essa percepção, a terapia de família também pode ajudar, esclarecendo os papéis e funções de seus membros e estimulando uma comunicação mais fluida.

A ocorrência de conflitos, agressões, privações, desespero vividos pelos familiares em decorrência do convívio com a droga, complica sobremaneira as relações familiares e gera consequências dolorosas para todos. Quando o usuário é um dos progenitores, observa-se um aumento de ansiedade nos filhos, dentro e fora de casa, pois nunca sabem o que pode acontecer quando o pai ou a mãe chegar. “Será que chegará bem ou sob o efeito da droga?” Essa imprevisibilidade deixa todos na casa em alerta, gerando um grande estresse que pode acarretar dificuldades, a começar pela aprendizagem, porque a ansiedade dificulta a concentração da criança ou do jovem, até o relacionamento social, com manifestações de agressão ou isolamento.

Outra consequência que precisa ser considerada diz respeito ao modelo de identificação e de referência dos filhos quando um dos progenitores usa drogas. “Em quem posso me espelhar?” Muitas vezes o efeito da droga gera comportamentos agressivos no usuário/dependente. Em consequência, além de estar lidando com o uso da droga, a família tem que lidar com a violência decorrente de seu uso. Esses comportamentos dificultam ainda mais a identificação com as figuras de referência.

Observa-se, também, ou um afastamento dos filhos de casa, evitando o conflito familiar, ou uma dependência demasiada, na tentativa que um ou mais filhos estabelecem de resolver os problemas e de defender o progenitor não usuário. Em razão disso, o filho não consegue seguir seu caminho, porque se sente responsável pela família, ocupando o lugar de protetor de todos. Isso não é bom para ninguém, pois a família não segue o curso da vida, que é justamente os filhos buscarem seus caminhos de forma independente. Além disso, a autoestima de todos fica rebaixada, pois há uma exposição a cada situação de conflito.

Quando o usuário é um dos filhos, a vida de todos passa a girar em torno dele, e os outros filhos ficam desconsiderados nas suas necessidades. A família cria formas de adaptação à situação e, muitas vezes, outros problemas surgem como consequência de escolhas inadequadas para a solução do problema. Ocorre um isolamento social do grupo e um distanciamento entre os familiares, não havendo espaço para os problemas de outros membros da família. Os pais já estão sobrecarregados com o problema daquele filho que usa drogas, o olhar muito ocupado com o filho dependente e os outros filhos acabam se sentindo furtados da mesma atenção. A comunicação fica truncada e não se fala diretamente sobre os sentimentos, porque se desenvolve a crença de que mais conflitos serão criados caso cada um possa falar da raiva e angústia que sente diante do fato. Cria-se o silêncio que mantém segredos, que, por sua vez, alimentam a negação dos problemas que a família precisa enfrentar, como: as recaídas, os gastos financeiros com o tratamento, o desgaste emocional e a dependência financeira do usuário.

E como sair dessa situação? Abaixo menciono algumas atitudes que podem ajudar:

Inicie um tratamento mesmo que aquele que apresenta o problema não queira participar. Não espere por ele. Todos os membros da família precisam enfrentar o problema mudando algumas atitudes.
Volte a atenção para si e para as outras pessoas da família. Todos precisam de carinho e atenção.
Não negue o problema. Se você se permitir estar diante dele, você conseguirá vê-lo melhor e, assim, criar estratégias para superá-lo. 

Você não vai ser capaz de controlar totalmente a pessoa usuária em sua relação com a droga. Esse é um trabalho dela. 

Não crie expectativas nas promessas feitas pelo usuário. Acolha como um desejo de mudar, mas, enquanto ele não iniciar um tratamento, estará com dificuldades para cumprir qualquer promessa.
Não faça ameaças que não vai cumprir. Antes de fazer qualquer restrição ou determinar um limite, pense se será você capaz de cobrar obediência. Promessas feitas e não cumpridas aumentam os problemas relativos ao limite. 

Estabeleça entre os familiares um diálogo que não esteja centrado apenas sobre o tema das drogas e sim sobre outros assuntos que também sejam interessantes. As outras pessoas da família têm preocupações que precisam ser discutidas. 

Demonstre seu amor sempre e não confunda amor com limite, regra com castigo. Seu amor não depende do quanto o outro lhe dá, ele não é condicional. 

Estimule a valorização da saúde, nas possibilidades que o esporte oferece como fonte de prazer, nas relações humanas como forma de promover um enriquecimento pessoal.

Todos os aspectos aqui apresentados não exaurem as questões relacionadas ao uso de drogas, representam somente uma versão dos problemas enfrentados pelas famílias que lidam com o uso de drogas. O importante é pensar que sempre podemos fazer algo para, se não resolver o problema, torná-lo menos agudo.

E lembre-se que ter uma “ratoeira” em casa não é problema só do outro. Somos todos responsáveis ou corresponsáveis pelos problemas que nos rodeiam estejam eles mais próximos a nós ou mais distantes.


Referências:

DESSEN, M. A.; COSTA JUNIOR, A. L. (orgs.). A ciência do desenvolvimento humano: tendências atuais e perspectivas futuras. Porto Alegre: Artmed, 2005.

LARANJEIRA, R.; SURJAN, J. Conceitos básicos e diagnóstico. Jornal Brasileiro de Dependências Químicas, 2 (supl 1): 2-6, 2001.

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