Monday, May 6, 2013


Na escuta terapêutica hoje, infelizmente é comum no meio da terapia surgir a fala: "me cortei , a dor alivia o sofrimento"
Eliziane Rosa

Esta matéria foi retirada da revista veja que trata deste assunto com clareza!



" Na Própria Carne
    Diante de uma angústia intensa, adolescentes se cortam escondidas em busca de uma forma de amenizar o sofrimento. A internet ajudou a revelar o alcance do mal.            
    Perturbador do começo ao fim, o filme Aos Treze, da diretora Catherine Hardwicke, tem alguns de seus momentos mais pungentes ao mostrar um hábito desconcertantes de Tracy, a adolescentes de 13 anos de idade vivida por Evan Rachel Wood: no auge do desespero, ela se tranca no banheiro, pega uma lâmina de barbear e abre sulcos nos próprios braços - não com um intuito de se matar, mais de aliviar a angústia. Não é só uma cena de filme projetada para chorar. No mundo fora da tela onde, quase dez anos depois de lançado, Aos treze permanece firme na lista de favoritos nessa faixa etária, muitos adolescentes, atormentadas por uma forma extrema da angústia indefinível, recorrem à automutilação como uma maneira desesperada de amenizar o sofrimento. Isso mesmo: por paradoxal que pareça, para essas meninas o gesto de corta o próprio corpo ajuda a aliviar a dor emocional. O ato é escondido, disfarçado , encoberto por roupas e bijuterias. Pode levar anos até que alguém da família perceba, e muitas vezes ninguém percebe. Pouco divulgada e pouco estudada durante muito tempo, a automutilação está saindo das sombras por obra principalmente da força reveladora de todos os segredos, a internet. Na rede, artistas conhecidas - mais recentemente americana Demi  Lovato, ela própria recém-saída da adolescência - têm se encarregado de levantar o manto que encobre os assuntos, contando a própria e dolorida experiência. Também na rede, comunidades se formam em torno do tema, algumas para apoiar as meninas que pedem ajuda, outras, ao contrário, para trocar ideias sobre novas maneiras de se machucar. “Nos últimos anos, aumentou muito a incidência de jovens que se mutilam. Eu recebo ao menos dois e-mails por semana com pedidos de ajuda, de adolescentes desesperadas ou de pais que não sabem como agir”, diz a psiquiatra Jackeline Giusti, especialista nesse tipo de distúrbio.
    Nos manuais da psiquiatria, a automutilação aparece como sintomas de outras patologias, como a depressão e o transtorno de personalidade bordeline. Mas o problema atingiu tal proporção nos últimos anos que a Associação Psiquiátrica Americana avalia uma proposta de defini-lo como uma patologia individual na próxima revisão da Bíblia do setor, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mentais, prevista para 2013. Não se trata de mera formalidade: ser categorizada como um transtorno por si só, como aconteceu com a anorexia nervosa, em 1968, e bulimia, em 1980 (ambas anteriormente tratadas como sintomas de outros males), significa estabelecer definições mais rigorosas, tratamentos mais adequados e, para as vitimas, retirar o problema do canto escuro em que sempre esteve precisamos definir critérios e elaborar uma noção exata sobre o mal, excluindo as mutilações triviais e também as que tem intenção suicida, que compõem outro quadro patológico, explica a psiquiatra Jackeline. Entre os critérios sugeridos para caracterizar o transtorno estão o número de vezes em que acontece (no mínimo, cinco), o objetivo que precede o ato (a busca de um sentimento positivo por quem é acometido de sentimentos negativos frequentes) e o modo como a lesão é feita (superficial).
    Embora se manifeste também em outras fases da vida e seja igualmente praticada por homens, a automutilação é um distúrbio típico de adolescentes, sobretudo meninas. “Os adolescentes vivem dramas pessoais de maneira muito intensa. Como o controle sobre o próprio corpo é um dos primeiros poderes plenos que conquistam, isso vira em meio para que o transtorno se manifeste. E as meninas, que amadurecem mais rápido, são ainda mais suscetíveis a ele”, diz o psiquiatra Luiz Alberto Py. Nesse quadro se encaixa a paulistana A.B. Ela tem 14 anos, mora com os pais e a irmã, é boa aluna, tem muitas amigas gosta de comprar roupas e de se cuidar. Mas relata que, com frequência, mergulha em um estado de angústia. Nessa hora, tranca-se no banheiro e se corta até a tristeza passar. “Um garoto de quem eu gostava se interessou por outra menina, e eu me machuquei com unhadas. Depois, sempre que me sentia inferior, usava lâminas, facas e estiletes para aliviar a sensação ruim. Não consegui mais parar”, afirma a menina, que por dois anos escondeu cicatrizes nos pulsos e tornozelos com pulseiras, blusas de manga comprida e meia grossas. A mãe descobriu o drama da filha quando encontrou no seu computador um arquivo de fotos que ela tirava de si mesma depois de se cortar. A.B esta em tratamento, mas ainda tem recaídas sem objetos cortantes ao alcance, ela se morde, se belisca e puxa os cabelos.
    Cortar-se, nesse contexto, não tem nada a ver com tentativa de suicídio ou gesto extremado para chamar atenção. Tampouco se relaciona com autopunição: quem se corta raramente sente dor. “O stress emocional libera no organismo delas a endorfina, substância responsável por anestesiar o corpo e proporcionar sensação de bem-estar”, explica Jackeline. O que leva, então, a menina a se machucar deliberadamente? “Trata-se inicialmente de um pedido silencioso de socorro perante um problema. Mas, com o tempo, a pessoa pode passar a se ferir sem pretexto, simplesmente para se sentir bem”, diz a psicóloga Anna Karla Garreto, do Amiti (Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso), do Hospital das clinicas da Universidade de São Paulo. A estudante J.T, de 18 anos, conta que tinha apenas 9 quando o avô, a quem era muito apegada, morreu. Ela descobriu que, para ela, arranhar a pele até criar feridas era uma forma de amenizar a saudade. Outras perdas ao longo da adolescência intensificarão a automutilação: com tesoura, cortava as coxas, seis e virilhas, área facilmente escondida sob a roupa. Numa crise aos 15 anos, desmaiou depois de se cortar; a mãe, enfim, deu-se conta do problema e ajudou a buscar tratamento. “Os cortes me traziam paz. Mas ao mesmo tempo me faziam mal. Minha vida social era comprometida pelo medo de descobrirem meus segredos”, afirma. J.T conta que esta há oito meses sem se cortar, mas ainda luta diariamente contra o desejo. “Tenho crises em que passo algum objeto na minha pele, com força. É como uma droga”, compara.
    Presente ao longo da história em formas variadas de autoflagelo, ato praticado inclusive pelos santos da igreja Católica, a automutilação é descrita na leitura psiquiátrica desde 1938, mas só veio a ser objeto de estudos e pesquisas a partir dos anos 1970. Não há dados precisos sobre a quantidade de jovens afetados, até porque muitos jamais são descobertos. A maioria das adolescentes que se cortam deixa de fazê-lo à medida que amadurecem. No mais vasto estudo sobre o assunto, realizado em conjunto pelo King’s College de Londres e pela Universidade de Melbourne, na Austrália, 1 802 pessoas foram acompanhadas durante dezesseis anos, da adolescência à fase adulta. Delas, 8% disseram ter se mutilado de alguma forma durante a adolescência (a bulimia atinge apenas 1%); aos 29 anos, menos de 1% mantinha o comportamento. “É normal que, com o tempo, os adolescentes aprendam a lidar com situações adversas através de outros mecanismos, diz a psicóloga Anna Karla. O que, alerta, não dispensa a necessidade de os pais estarem atentos e, percebendo o distúrbio, buscarem ajuda: “Com sessões de terapia e medicação, a pessoa que se automutila terá mais ferramentas para controlar sua impulsividade e encontrar alternativas”.

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